terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Carta Póstuma

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No tempo em que escrevo esse texto, calendários já são obsoletos. Há muito a humanidade já não sabe em que ano se está exatamente, desde a primeira vinda de Jesus Cristo, que dividiu a história. Não se faz mais sentido saber. Há poucos resistentes, que afirmam saber ao certo em que ano estamos, mas não são confiáveis, eis que até mesmo os números por eles afirmados são muito díspares entre si. Às vezes a diferença chega a dezenas de anos.

A verdade é que há muito tempo a humanidade se esqueceu de contar os anos. Viu que isso não se fazia mais necessário, ou talvez apenas por preguiça mesmo, já que hoje pouco fazemos; as máquinas fazem por nós. Só esquecemos de criar uma máquina que contasse os anos com eficiência – não fomos capazes de prever que aquele erro do bug do milênio se repetiria alguns séculos depois. Mas já estávamos tão entregues ao labor das máquinas que sequer pudemos antever isso.

Por causa dessa incapacidade de adequação cronológica pela qual a humanidade passa nos dias de hoje, não sei dizer ao certo o momento da história em que isso tudo começou. Sei que já faz alguns séculos – dois talvez – uma vez que eu mesmo, que ainda sou jovem, já estava aqui para poder presenciar tal fato. Mas acho que a origem disso tudo vai ainda mais longe: deve ter sido lá pelo século XX – sim, ainda temos registros históricos desse momento – quando o mundo viu surgir o conceito de Welfare State, o tal do Estado do bem estar social. Surgiram os tais direitos de segunda geração, também chamados prestacionais, ou seja, agora que a humanidade estava toda ferrada, castigada pelas guerras do século XX, o governo deveria fazer por onde e ampará-la. Ia-se pelo ralo aquele conceito do Adam Smith de que a mão invisível do mercado consertaria todas as coisas, e que o Estado jamais deveria intervir. A iniciativa privada dava lugar ao Estado em questões sociais, tais como educação e saúde. Isso somado ao absurdo avanço tecnológico que o mundo testemunhou a partir daquele século, muito mais do que todos os outros séculos somados e elevados ao quadrado, que permitiu que se descobrisse curas pra doenças antes tidas como incuráveis, métodos de rejuvenescimento da pele, e de prolongamento da vida etc.

Mas nós não estávamos satisfeitos: queríamos mais. Viver até os oitenta anos não era mais nada de especial – todos viviam. Vamos até os cem anos. Dos cem, vamos até os cento e dez, e assim por diante. Até um ponto em que se viu que poderíamos prolongar oquanto fosse as nossas vidas, ainda assim estariámos enclausurados em um corpo que não adiantasse o quanto as técnicas de rejuvenescimento permitisse, se tornaria cada vez mais caquético, eis que a natureza, nesse sentido, é uma força incontrolável, impossível de ser detida – talvez apenas retardável, como pudemos perceber nos primeiros anos.

Não bastava mais retardar o envelhecimento natural de nossas células, eis que um dia elas se desgastariam de qualquer jeito. Os átomos que compõem nossas células, que compõem nosso corpo, se cansariam um dia de cumprir sempre aquela mesma função, e partiriam em busca de outros átomos para formar novas moléculas e possivelmente novas células de um novo organismo. Descobriu-se então que a melhor forma de evitar isso tudo seria descobrir uma forma de nos eternizarmos. Foi o que fizemos: criamos corpos sintéticos, que não envelheceriam na mesma proporção que nossos frágeis corpos que Deus nos deu. E ainda assim quando estivessem velhos e frágeis esses corpos, tais como os corpos dos velhos de outrora, descartaríamos, como se descarta a um copo de plástico após saciar-se a sede.

E assim fizemos: transferimos nossos pensamentos, nossas ideias, valores, amores, amizades, e tudo o mais que nos fazia humanos a um corpo frio e sem vida, ao qual trataríamos de avivar e aquecer.

Primeiro a humanidade escolheu quem deveria fazê-lo: houve uma grande seleção, envolvendo as maiores nações do planeta, que indicou seus maiores pensadores, líderes, os mais respeitáveis enfim. Houve entre estes quem se opusesse, mas a grande maioria foi favorável ao projeto. Afinal, a vaidade neste momento falava mais alto do que muitas convicções pessoais e religiosas.

Com o tempo, barateou-se o procedimento, e todo o tipo de pessoa pode fazê-lo, por uma bagatela. Claro que era uma bagatela para os países do norte, eis que para muitos países subdesenvolvidos – mesmo depois de séculos, não conseguiram se livrar de tal alcunha – ainda era uma fortuna. Os resistentes, a quem me referi no começo dessa carta, são em sua maioria oriundos destes países, pois que além da questão financeira envolvendo o procedimento, ainda há o fato de que em sua maioria são países que possuem um apego à religião, a forças místicas que segundo suas crenças dominam o universo. Por isso mesmo entendem ser isso tudo uma afronta aos seus credos.

Àquele tempo eu não cria em Deus algum. Hoje me arrependo disso. Digo isso porque, assim que se foi barateando o custo do procedimento, fui um dos primeiros a buscá-lo. Depois de um tempo, já se via propaganda na TV a respeito, outdoors espalhados pelas principais avenidas das grandes capitais ao redor do mundo; um grande comércio surgiu a partir disso tudo. Grandes empresas farmacêuticas envolvidas, muitos lucros às custas de trabalhadores que sequer tinham condições de realizá-lo em si mesmos.

Fiz o procedimento e hoje, alguns séculos depois – tempo que sequer sei precisar, pois passei muito tempo ocupado em fazer tudo que pudesse fazer, o que meu modo limitado de vida pré-procedimento jamais me permitiria – vejo o vazio que tudo isso representa. Não deixei aqui na terra legado algum; nem quis fazê-lo durante muito tempo, já que imaginava que meu maior legado seria eu mesmo, fisicamente eternizado.

Com isso, não apenas eu, mas todos os que se submeteram ao procedimento passaram a viver uma vida sem propósito, eis que não nos restava mais nada a fazer – até mesmo o nosso trabalho havia sido delegado às máquinas, que o faziam sem se cansar ou reclamar. Há algumas dezenas de anos atrás fui cansando e percebi que não havia mais nada a ser visto, que não havia novidade alguma na terra. Subvertemos a natureza e ela agora nos subverte, ao nos escancarar o fato de que não somos para sempre – ou não devemos sê-lo. Tudo deve estar em constante mutação.

Hoje cansado disso tudo, escrevo essa carta, que na verdade já se afigura póstuma desde a primeira letra, eis que morri há muitos anos atrás; esse que vos escreve é apenas um projeto de humano, há muito largado em um corpo que não é seu. Já troquei de corpo algumas vezes, pois como já disse, assim como nós deveríamos ser, esses corpos não duram pra sempre. Mas desta vez, depois já de muito tempo assim, não pretendo mais trocar. Não há como me desligar, ou morrer, no velho jargão humano pré-procedimento. Por conta disso, só me resta esperar. Espero até que a bateria acabe. As células cerebrais que mantém minha consciência viva não resistirão à falta de energia. Daí não terei mais como ligar-me e assim poderei finalmente descansar em paz.

Minha porção ficção científica, aliada a um estranho surrealismo kafkiano me permitiram escrever esse texto. Tá, não é grande coisa, mas já tá melhor que Guerra Dos Mundos, não?

2 comentários:

  1. não curto muito ficção não...ah mas qualquer investida é válida...me lembrou A metamorfose (de Kafka)...não sei porque...

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  2. Kafka é bom tb...gostei do texto, mas vc já sabia disso.
    Bjs

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