sexta-feira, 6 de março de 2009

O homem que tinha dois corações

dois corações

Não se sabe por que razão exatamente. Mas a verdade é que, ao contrário deste que se pode ver nos jornais essa semana, este a que me refiro já nasceu assim. A mãe lembra ainda da primeira ultrassonografia, na qual todos pensavam tratar-se de gêmeos. Os pais fitavam o monitor na esperança de encontrar ali naquela massa cinza que a tela indicava qualquer sinal das duas crianças, mas só encontravam uma. Diziam que se tratava da má qualidade do equipamento – afinal, não dispunham de muitas posses, e mesmo assim, àquela época, os equipamentos não eram tão desenvolvidos quanto os de hoje em dia. Mas poucos meses depois os médicos não viam qualquer desenvolvimento de outra criança além dele; e o seu nascimento então desfez qualquer dúvida quanto a outro bebê ou não. Era apenas um, mas com dois corações.

De fato, por alguma anomalia sem explicação aparente – daquelas que só se vê na TV, em House –, ele nasceu com dois corações. Ainda criança, os médicos diziam que talvez não vivesse muito. Afinal, por algum motivo que não sei explicar direito, ter dois corações não é exatamente algo normal, fisiologicamente falando. Mas, contrariando o que apontavam todas as previsões médicas, ele viveu, e muito. Acho até que esses dois corações deram um certo impulso, rejuvenescendo-o ao longo dos anos – não, ele não é o Benjamin Button, mas é como se os corações se revezassem ao longo do tempo nessa função de bombear sangue, de modo que nunca se cansavam completamente.

Deste modo, ele sempre estava bem disposto; foi sempre uma criança saudável, e se desenvolveu sem problemas. Em sua vida adulta, não era exatamente um atleta, mas não se privava de umas corridas no calçadão às vezes, ou um futebol com os amigos no fim de semana.

E assim seguia a vida, batendo de frente com todos os prognósticos que lhe diziam que não vingaria. Nunca se viu coração que fosse tão saudável quanto os seus, e ele jamais se privou de atividade alguma em nome da suposta doença. Pelo contrário, fez tudo o que pode: enquanto criança, estava sempre de castigo, seja em casa, seja no colégio, por conta do que aprontava; quando adolescente, brigou com os pais, saiu de casa, teve várias namoradas etc etc; já adulto, passou a fazer da bebida e cigarros um hábito – como tinha dois corações, pensava, deve ter maior resistência a esses males –, além de relacionamentos fugazes com mulheres que não fazia questão alguma de conhecer melhor.

Sempre se gabava de seus dois corações – diziam que o tornavam uma pessoa melhor –, como se isso o tornasse superior às demais pessoas. E com isso passou uma vida inteira alheio a elas, sem se envolver demais com ninguém: amigos, namoradas, família – como se ele se bastasse.

- Ele deve achar que tem o rei na barriga! – pensavam muitas de suas “ex” ao serem dispensadas, ou seus poucos amigos, ao serem desprezados, ou ainda, seus poucos familiares que mantinham contato, entre outros; era, de certo modo, pensamento corrente de quem se envolvia com ele.

Consultando o dicionário, vê-se que a definição de “coração”, além de órgão responsável pela circulação do sangue, é também sede da sensibilidade moral, das paixões e sentimentos, o conjunto das faculdades afetivas. Nesse quesito, porém, nosso amigo deixava a desejar. Já no fim da vida, ao olhar pra trás e observar o que fora feito até então, o que ganhou e o que perdeu, ele percebeu que ter dois corações nunca foi uma virtude, pois que nesse sentido ele era exatamente o revés do que coração pode significar. Ao fim de sua vida descobriu, portanto, que apesar de sempre ter tido dois corações, nunca soubera como usá-los.

2 comentários:

  1. Quando ele vai morrer? Avise-o, de repente ainda terá tempo de aprender a usar

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  2. Ele é um Senhor do Tempo de Gallifrey, se ele quiser pode se regenerar 12 vezes, antes de morrer, e assim, viver uns 1000 anos. Se quiser saber mais procure por Doctor Who

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