domingo, 12 de abril de 2009

Começo do fim…

família_osgemeos

Acordei cego. Abri os olhos hoje, ao acordar, e não vi nada. Um breu completo. Fui tomado por um medo súbito, e uma aflição: o que significava isso? Seria essa uma condição permanente, ou apenas um mal temporário? Apesar do desespero em que me encontro, rogo a Deus para que não seja um castigo divino – Ele castiga os seus? – e que tudo volte ao normal.

Grito por socorro, mas ninguém vem a mim. Não há ninguém na casa que possa me acudir nesse momento de angústia, de modo que me resta apenas erguer-me da cama, e tateando pelo cômodo, entre as lembranças que eu tinha das coisas que ali se encontram, procurar alguém que possa me ajudar.

Nesse momento, levanto-me, e com uma das mãos na cama, e a outra na cômoda lateral, vou observando com a ponta dos dedos o que me cerca, tentando lembrar como eram as coisas, onde estavam e do que deveria me desviar, para não ferir-me.

Teria sido mais fácil se tivera dormido em meu próprio quarto. Mas ontem, depois de alguns anos, retornei à casa dos meus pais, que fora minha também durante muito tempo. Fui fazer uma visita, daquelas burocráticas, sabe?, que se faz umas poucas vezes ao ano, em períodos como esse da Páscoa, ou quem sabe no Natal também. Após tanto tempo, aquele quarto que um dia tinha sido meu mantem-se intocável, com a minha cama, minhas fotos, meus armários – agora vazios – e minha juventude.

Após uma tarde em família, cercado por pessoas que hoje me parecem tão distantes, fui ficando, enquanto todos os outros se dirigiam às suas casas. Apesar do incômodo que me abraçava por todo o tempo em que estive na casa, mais forte era a sensação de familiaridade, de que aquilo, de certo modo, me pertencia também – talvez por isso, não tenha ido junto com o tio Jonas, quando este me ofereceu carona. Mas, na verdade, deveria ter-me ido embora, só que a essa hora já era tarde: a chuva repentina que caiu do lado de fora da casa me impediu; pingos grossos, que chegavam a fazer um estridente barulho na calha e vento forte, que uivou à minha janela por toda a noite. Meus pais prontamente ofereceram-me aquele que fora meu quarto um dia, insistindo que eu deveria ficar, que não me atrevesse a ir embora com uma chuva daquela.

Pois bem, a insistência dos meus pais e o mundo que desabava sobre nossas cabeças – como se, tal qual os gauleses, devêssemos ainda hoje temer algo do tipo – do lado de fora foram suficientes para que eu revisse meus planos, e passasse uma noite lá – algo que há muitos anos não fazia. No meu quarto, lembranças que há muito quis reprimir, permaneciam intocáveis, e a noite me parecia mais longa do que o normal.

Não sei ao certo quando isso se deu, só sei que em algum momento de minha adolescência havia me cansado; tive que sair de casa para poder me reconhecer, me perceber. Éramos tão unidos, estávamos sempre tão juntos, que não mais me reconhecia como indivíduo – precisava sair desse ambiente, me encontrar.

A oportunidade se fez quando passei para a universidade, em outra cidade, onde agora trilharia meus próprios caminhos. Saí de casa sem dor, sem remorso algum, procurando me achar, numa busca até então em permanente inconstância. Agora, cá estava eu, derrubando fotos de meu passado – da minha primeira comunhão, a qual reconheci por causa da moldura, que eu mesmo escolhi quando era criança, mas só tempos depois percebi o quão feia era. Assim como aquele meu carrinho, lá na estante, um dos primeiros brinquedos do qual tenho quaisquer lembranças. Ganhei muitos outros depois; de fricção, controle remoto etc, mas aquele sempre fora o meu favorito.

Estudei, me formei e hoje trabalho e vivo um pouco longe daqui, dessa casa e dessas lembranças. Em todo esse tempo, nunca me fizeram falta; pelo menos assim imaginava. Neste momento todas elas me cercam, e eu, que tanto fiz para esquecê-las, nunca fui delas tão dependente quanto agora.

Com a ponta dos dedos vou vendo e reconhecendo tudo aquilo que deixei pra trás, e percebendo o quanto isso é, de fato, importante pra mim. Com o tato, vejo minha infância, meus machucados, meus brinquedos, meus amigos da rua, minha adolescência, o primeiro beijo, a primeira namorada, o primeiro show e muitas outras primeiras coisas que a gente só vive nessa época.

De repente, chego à porta, alcanço a escada, e dali ouço o ronco do velho automóvel dos meus pais. Ouço também o tilintar das chaves, ao abrir a porta, e meus velhos me cumprimentarem e dizerem, ao entrar, e me ver no vão da escada, quase que em uníssono: “Te amo! Feliz Páscoa!”

Nesse momento minha visão clareia, e posso agora ver com perfeição todas aquelas memórias que me rodeiam.

E, mais do que nunca, tenho certeza que minha busca chegou ao fim.

 Ouvindo Primeiro Andar, dos Los Hermanos.

  Los Hermanos - Primeiro Andar

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