terça-feira, 6 de janeiro de 2009


Era, de fato, uma porta de vidro grossa, e pesada, mas nada que pudesse obstar a minha passagem. Era ainda daquele tipo de vidro fosco, do qual não se pode ver nada do outro lado, e, além disso, destoava completamente das demais portas daquele andar, quiçá do prédio inteiro, já que, tirando as portas dos auditórios, que também eram de vidro, todas as demais são de madeira, inclusive dos banheiros – quando estes as têm, é verdade. Mas, como disse, apesar de todos esses predicados, a porta não fora capaz de me deter.

Ao cruzá-la, deparo-me com uma mulher, aquela que seria uma típica funcionária administrativa de repartições públicas, não fosse o fato de que talvez não fosse tão velha quanto me acostumei a pensar que as funcionárias públicas eram, ou deveriam ser. Devia ter por volta de vinte e alguns anos, apesar de aparentar já ter há muito se familiarizado com Balzac. Provavelmente envelhecera por conta da fadiga resultante da absoluta falta de vontade de exercer seu ofício.

Porque, na verdade, este não a interessava tanto. Digo isto porque ela possuía outro muito mais agradável, que não era o oficial, aquele que provavelmente consta do estatuto de sua categoria, da lei, ou qualquer coisa que o valha, mas que a satisfazia de uma forma única neste mundo: sacanear o pobre do contribuinte, que necessita apenas de seu serviço.

E neste caso específico, o pobre do contribuinte a que me refiro é aquele que linhas acima tinha acabado de cruzar a porta: eu mesmo. Inocente, diria até mesmo cândido, desprovido de qualquer maldade, e provido apenas de um protocolo na mão esquerda, dirijo-me à tal, vinte e poucos com cara de trinta, e corpinho de sei-lá-o-quê (tá bom, ela realmente não era gata), na esperança de obter uma mera certidão – apenas isso – cujo pedido eu fiz ainda no longínquo ano de 2008:

- Olha, tô vendo aqui na relação de pedidos – um caderno vagabundo, onde anotam os números dos protocolos, cuidadosamente alocado ao lado de um computador –, e o seu ainda não está pronto não...

- Mas eu fiz esse pedido no ano passado, ainda antes do recesso, e disse pro senhor – nessas situações eu sempre procuro ser o mais respeitoso possível, apesar de que aquele que me atendeu pela primeira vez estava mais pra senhora. Afinal, essas pessoas que trabalham em repartições públicas podem ferrar com a sua vida – que me atendeu aqui pela primeira vez que havia uma certa urgência...

- É, mas não posso fazer nada – disse ela, entremeando a frase com o mascar do chiclete, a essa hora bem duro, já que fora comprado logo cedo, na cantina do primeiro andar.

Que pesadelo kafkiano estava vivendo. Explico-me: não havia me transformado em inseto gigante algum, ou coisa parecida. A verdade é que, como já disse acima, caro leitor, não foi a primeira vez que pus minha paciência à prova naquele mesmo local: ainda no ano passado estive lá, para obter a referida certidão, e ao adentrar o corredor – um dos mais bizarros de todo o prédio, diga-se de passagem –, deparo-me com uma festa de final de ano, organizada pelos funcionários da repartição. Dirijo-me a uma senhora, pra obter uma informação, um auxílio, sei lá; esta, por sua vez, espantosamente gentil e delicada para comigo, não hesita em abrir um enorme sorriso e alegremente me dizer que naquele dia não haveria expediente após o meio-dia, uma vez que era a confraternização dos funcionários. Registre-se: era por volta de 12h10, não muito mais que isso. Só aí eu entendi o motivo de tanta felicidade estampada no rosto daquela funcionária.

Tentei ainda argumentar, mas ela nada mais podia fazer, já que os computadores já estavam desligados, e o sistema estava fora do ar. Mas, peraí... O registro de tudo não era feito naquele odioso caderno velho em cima da mesa? O computador não era algo absolutamente inútil naquele ambiente? De fato, mas isso era algo que descobriria apenas no dia seguinte.

É, creia-me: eu voltei no dia seguinte, na vã esperança de que meu problema fosse solucionado. Só que dessa vez cheguei mais cedo, por volta das 10h, só pra garantir. Foi aí então que fui atendido por aquele senhor que levanta várias suspeitas. Após protocolar o meu pedido, e ser devidamente informado da urgência da certidão, o rapaz disse que nada podia fazer, pois que o prazo para expedição do documento é de 5 dias; um mero pedaço de papel assinado por algum dos “trocentos” funcionários da casa levaria cinco dias pra ficar pronto! Mas o pior ainda estava por vir: por conta do recesso de final de ano, a certidão ficaria apenas para 2009! Será que por lá ninguém sabe o que significa a palavra “urgência”?

Mas, diante da minha aflição, o funcionário tentou me ajudar. “Quanta solicitude!”, pensei eu. Deveria procurar por Maria, a chefe do departamento, que poderia autorizar a expedição do documento com a antecedência que me era necessária. Só que havia um porém: ela só chega após as três horas da tarde. E provavelmente sai às 3 e meia, porque para chegar nesse horário é porque não tem qualquer apreço pelo serviço. Como assim? Uma funcionária pública que chega às três horas da tarde. E eu já disse que era por volta de dez da manhã?

Quando ouvi isso, entreguei pra Deus, e vim pra casa; mas não sem antes ter do funcionário a garantia de que no dia 5 de janeiro de 2009 estaria pronta a certidão. Neste momento da história retorno ao dia de hoje, 11h45, porta de vidro, funcionária de vinte com cara de trinta, contribuinte sacaneado, chiclete velho, negativa e Franz Kafka, jogando paciência no computador.

5 comentários:

  1. O pior é que a gente permite tudo isso e acaba se acostumando, tratando-os como se nos fizessem um favor (e ai de nós se não os tratarmos assim!), decorando o horário dos funcionários que quase nunca aparecem e que supostamente são os únicos que podem resolver o nosso problema específico, etc.!

    Fazer o quê?! Talvez um concurso e agir como eles! Conformismo é um mal grave.

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  2. É, meu caro. Em breve precisarás do DAA também...

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  3. Já vejo a porta de vidro, a funcionária semi-balzaquiana, o chiclete... e tremo de medo.
    Julia

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  4. Pensando sobre isso, cheguei a conclusao q o funcionalismo publico brasileiro comete esses equivocos por uma especie de esquizofrenia social do seguinte tipo: importamos as legislaçoes e tendencias administrativas da europa, com todas suas impessoalidades, compromissos, etc., mas no intimo nao temos motivacao para fazer tudo isso funcionar pois nao curtimos esse negocio de impessoalidade, de compromissos, etc! Curtimos, pelo contrario, a pessoalidade, o descompromisso, etc!, ou seja, queremos poder dizer "sua declaraçao nao ficará pronta até q EU vá com a sua cara e decida aprontá-la". Esse "EU" é qualquer um, é todos nós.

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