Tinha apenas uma edição velha de um livro de poesias em cima da mesa – agora ainda mais velha, com o novo acordo ortográfico. Mas isso pouco lhe importava, “a obra em si está acima disso”, pensa. Mas nessa hora não queria ler; não parava de pensar na vida ao seu redor. O café que tinha pedido havia algum tempo já estava frio, mas é que ela era assim: quando se danava a pensar em algo, se perdia em seus pensamentos, não via a hora passar. Perdia o olhar em algum lugar da rua, ali pelo Leblon, que tem aquela vista que quase arromba a retina de quem a vê, observando as pessoas caminhando, as mães com seus carrinhos de bebê, as pessoas voltando da praia, as vitrines os vendo passar, como na canção do Chico – uma de suas preferidas.
Olhava as pessoas, imaginando que tipo de vida teriam, os rumos que seus destinos tomariam, vivendo suas vidas. Como, por exemplo, o que aconteceria se aquele encontro apaixonado daquele casal de desconhecidos que acabou de presenciar não tivesse se realizado, ou se aquele pai tivesse se atrasado ao buscar a filha no colégio, ou, ainda, se a vida daquelas pessoas do outro lado da calçada tivesse se cruzado naquele momento, com um mero esbarrão. Mas com o mundo do jeito que está hoje em dia, as pessoas não se permitem esbarrar-se; do contrário, esquivam-se a todo custo. Cada um com seu cada qual, e assim a gente vai levando, tal qual aquela outra canção.
“Vocês precisam desacelerar”, foi o que disse uma vez sua mãe, para ela e sua irmã, quando, ainda no arroubo da adolescência, começaram a sair todas as noites, chegar tarde, e também quando surgiram os primeiros namorados, deixando os pensamentos e atitudes pueris para trás. Foram alguns os seus rapazes, não muitos, mas nenhum realmente duradouro. Todos fugazes e vazios – talvez os esbarrões não tenham sido fortes o suficiente.
Pensa que, seguindo o conselho de sua mãe, deveria desacelerar um pouco. Ouvir mais um samba, cantar mais a vida. E viver menos a vida dos outros.
- Às vezes é tudo que as pessoas precisam para ter felicidade, um mero esbarrão – comenta com si mesma. Isso porque, por mais pessoas que houvesse ao redor, nenhuma delas a ouvia, apenas ela própria. Talvez seja ela quem precise de um esbarrão também, apenas para enfim encontrar a metade exilada dela mesma.
Mas, ainda assim, ela não deixa de viver a vida dos outros – talvez seja assim só porque ela faz cinema, naquele curso da UFF, o que, imagina, aflora sua criatividade. Só que, nisso de viver observando o alheio, não imaginava que um dia pudesse ter seus olhares correspondidos. Nessa mesma tarde, enquanto remexia o café frio com a colher, em uma mesa disposta sobre a calçada, sentia-se observada também. Outro alguém lia-lhe a vida, imaginava o que teria vivido até então, e o que haveria de viver no futuro.
Não sabia de onde vinha, apenas sentia; e sabia que não gostava. Deixou o café lá, pela metade, colocou e livro debaixo do braço e levantou-se, tentando esquivar-se desses olhares. Caminhou apressada pela calçada, entrou em uma galeria, até que esbarrou em alguém: era aquele que lhe detia o olhar desde o começo, e agora, junto dela, catava-lhe as suas poesias entornadas no chão.
Hoje é dia de tirar a poeira daquele disco do seu pai, do cd da sua prateleira ou do mp3 do seu computador. Ouvindo As Vitrines, de Chico Buarque.
Você escreve muito bem Renan! Não sei de onde tira tanta inspiração!! Hoje foi da música né?
ResponderExcluirhehe Parabéns!
Beijos,Polyana